Há muitos anos atrás, numa sexta-feira de lua cheia, lá pras bandas do Sertão do Ribeirão da Ilha de Santa Catarina, antiga Nossa Senhora do Desterro, num milharal próximo à praia da freguesia do Ribeira, um saragaço soava longe. Parecia miado de gato pequeno, misturado a latidos de cachorros. próximo do local, uma velha benzedeira, assustada, acendeu a pomboca e foi até a janela para ver o que se passava. Lá fora, bem longe de sua casa ela conseguiu avistar uns cães do mato a latir sem parar.
- Crux-credo... Elex tão doido, é? Xiiiiiiiiiiiii... Devi sê as marvada dax bruxa nax andança noturna, só podi.
Enquanto a benzedeira assoprou a pomboca e resolveu se deitar após uma reza de proteção contra os atos bruxólicos, um pescador em alto mar, ouviu um choro de criança recém-nascida que vinha de trás de um milharal, em terra firme. O local ficava nos fundos da casa de sua comadre benzedeira que nessa hora já estava a roncar.
O lugar dava de frente para o mar e lá de dentro de sua canoa, o pescador que era o mais velho entre os outros que o acompanhavam na pescaria, chamou a atenção dos amigos.
- Vancês tão oivindo o queu tô?
Um dos pescadores retrucou enquanto outros riam:
- Tô não cumpadi... O cumpadi que me dixcurpe, maix deve sê cousa da tua baça, visse? Onde já se viu oiví choru dei guri piqueno nessa dixtânça, homi di Deux?
O velho pescador que tinha o costume de perder as estribeiras ao ser provocado, levantou da ponta da gaiuta e falou:
- Poix intão acabou essa pexcaria!!! Vamu todo mundo de vorta pra bera da praia e aí vamu vê se isso é cousa da minha cabeça, visse cumpadi!!!
Como era muito conhecido pelos seus rompantes, que eram de deixar qualquer um sem saída, ninguém quis contrariá-lo e voltaram para ver que choro era aquele que só o velho pescador estava a ouvir.
Ao se aproximarem do local, seguindo o choro de criança, que ora parecia miado de gato, ora parecia ganido de cachorro, o choro ficava cava vez mais próximo. E, para surpresa de todos, o pescador mais velho, já um tanto irritado, o José Tião, mais conhecido por Zé das Pedras, encontrou no meio do milharal uma criança recém-nascida enrolada em panos velhos, sobre as palhas de milho no meio do milharal.
A criança parecia estar enrolada numa coberta de pluma de pato, de tão quentinha que estava. Era um menino de olhos grandes e cheios de lágrimas que banhavam o seu rostinho miúdo. Ele olhou os pescadores um por um e mostrou um discreto sorriso para um dos pescadores, feito um ser encantado.
Para a admiração de todos, o pescador mais novo do bando pegou o menino e o abraçou fortemente como se já o conhecesse há muito tempo. Os olhos da criança faziam ele lembrar do olhar de uma pessoa muito querida para ele. Foi então que o bando de pescadores fez um grande saragaço.
- Maix veja só, não foi qui o gurizinho goxtô dele?!
- Sei não - disse outro pescador - inté pareci cum essaí!!!
E, com todos falando ao mesmo tempo e cada um dizendo algo diferente, ninguém percebeu que o menino calou e dormiu tranquilo no colo quentinho do Zezé, o pescador mais novo.
Depois do saragaço veio a calmaria que organizou as ideias dos pescadores que, agora mais calmos, foram à procura de uma solução.
Alguém precisava ver se a criança era menino ou menina.
Foi então que o seu Vivinho, o pescador mais velho de todos, teve a ideia de levar a criança para alguma mulher da redondeza. E, veio à ideia de todos, levar o recém-nascido para a Dona Sissa, aquela que foi até a janela antes do seu Vivinho ter ouvido o choro da criança.
Além de precisar saber se a criança era menino ou menina, eles também pensaram ao mesmo tempo que o recém-nascido deveria ser benzido. E, logo veio à cabeça do Zezé, que a Dona Sissa, que era uma benzedeira de mão cheia.
- Gente, achu que além da genti vê si essa criança é isso ô aquilu, si ela tivé imbruxada vai tê que sê benzida. Intão vamo logu pra casa da sinhá Sissa, vamu?
Dona Sissa, que já estava roncando embaixo das cobertas, acordou e acendeu a pomboca para atender o chamado do seu Vivinho. Ela pegou a criança e ao ver que era um menino, o olhou da cabeça aos pés... E, sem nada encontrar, fez sobre ele uma reza de proteção, que era assim:
"São Pedro, salva-me bem que me vou.
Jesus Cristo foi Batizado.
Na arca de Noé me meto.
Com as chaves de São Pedro me fecho,
Para que nenhum mal te aconteça.
E tudo quanto perder, apareça.
A Jesus me entrego,
E a Jesus um credo rezo.
Amém!”
Depois desse benzimento, Dona Sissa colocou um "brebe" de proteção no pescoço do menino, para que ele ficasse protegido de todos os males do corpo e da alma. Em especial, contra os atos bruxólicos. Bem sabia ela que as bruxas malvadas gostavam de chupar sangue de criança pequena, fazer nós nos seus cabelos e beliscá-los para fazê-los chorar durante à noite. E, o menino ficou bem protegido. A benzedeira o banhou e lhe deu leite de cabra para ficar forte e enfrentar a vida.
Mas alguém precisava adotar o menino. E quem faria isso? O Zezé que, ao recusar a ideia, ouviu da Dona Sissa:
- Mô fio, agora toma qui ele é teu... O gurizinho vai si dá bem cuntigo, mô fio. Ele é teu, sabiax?
O menino, que parecia entender o que a benzedeira falou, se agarrou no braço esquerdo do Zezé parecendo querer ficar com ele. Por sua vez, ao olhar nos olhos do menino, Zezé soltou uma frase que surpreendeu os amigos.
- Ele vai se chamá João!
Assim, o tempo passou e João já não era mais um menino. Agora era o Velho João, aquele que nasceu lá pras bandas da praia do Ribeirão.
Certo dia, ele acordou de madrugada com um barulho vindo de sua cozinha. E, pé por pé, Velho João saiu de seu quarto, desceu a escada, e assustado com o que seus olhos viram, se agachou e congelou bem no meio da escada.
Agachado e agarrado ao corrimão da escada, Velho João viu um bando de bruxas na sua cozinha a colocar gravetos no fogão à lenha para cozinhar as suas mandingas no maior saragaço. Elas tagarelavam suas tramas bruxólicas, que de tão alto, dava de se ouvir lá do outro lado dos confins do mundo. Nessa noite, as bruxas planejavam uma festa na beira da praia... E, nesse momento, a bruxa mais velha do bando falou alto e aos gritos para chamar a atenção da bruxarada:
- Meniiiiinas!!!... Tô sentindo cheiro de homem... Vassoura, vassoura matreira!!! Saia já daí e veja quem é... Ande logo sua molenga!!!
Nesse instante, a vassoura que estava encostada atrás do fogão à lenha, espionando tudo, saiu correndo, subiu a escada e se meteu entre as pernas do Velho João. E, dando uma rodopiada pela cozinha, a vassoura saiu janela afora. E os dois subiram até às alturas.
E lá se foi a vassoura levando o Velho João, aquele que um dia apareceu chorando lá pras bandas do Ribeirão.
Dizem que a vassoura voou por todo o Ribeirão da Ilha de Santa Catarina, com o Velho todo desengonçado na sua garupa. Os dois foram até o Centro da antiga Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, e lá das alturas, sobre a velha figueira da Praça XV de Novembro, Velho João viu um bando de crianças em círculo e no meio delas estavam alguns palhaços se apresentavam com suas palhaçadas e as suas estripulias. Eles cantavam, tocavam seus instrumentos musicais e dançavam freneticamente. E a criançada ria, aplaudia e gargalhava.
Lá das alturas, Velho João, ainda tonto e sem prática de voo sobre vassouras, caiu bem no meio dos palhaços e suas travessuras. Foi então, que a plateia riu mais ainda ao pensar que aquilo fizesse parte da palhaçada.
Velho João, que de bobo não tinha nada, saiu dançando feito criança. E, entre o riso da gurizada, ele pulou no meio da roda e dos palhaços e dançou feito criança. Envolvido nesse mágico momento, ele até esqueceu das dores nos joelhos e nas suas costas arcadas pelo tempo. Seus cabelos ralos, pareciam fios dourados banhados pela luz do sol. Parecia estar além dessa noite arrepiante.
Depois de muito pular, cantar e dançar, Velho João sentiu uma saudade louca de seu travesseiro, o seu maior companheiro. Enquanto isso, lá escondida atrás da "velha figueira", a vassoura matreira, ao ver a alegria estampada no semblante da gurizada, beliscou um fiapo de suas palhas e matutou:
- Ah... Velho João, Velho João, chega de brincadeiras... Nunca vi dentro de uma só pessoa tanta felicidade! Meu menino é hora de parar com essas travessuras e voltar para casa. É por isso que...
E mal a vassoura acabou de matutar, saiu em disparada e se meteu entre as pernas do Velho João. E os dois voaram de volta lá para a praia do Ribeirão.
De repente, em casa, Velho João se viu embaixo do colchão, com seu pijama listrado e todo amarrotado. Assustado e agarrado ao velho travesseiro, o seu maior companheiro, o velho matreiro sussurrou de si para consigo:
- Velho João, velho João o que que é isso homem? Já sei, continuou ele - devo tá sonhando demais. Deve ter sido aquela feijoada cheia de gostosuras. E foi coçando a velha careca que Velho João sentiu um arrepio acompanhado de um calafrio que abraçou o seu corpo enrugado. Nesse momento arrepiante, ele segurou o "brebe" e o apertou bem forte ao peito e falando alto, dizendo:
- Jesus, Maria, José... Protejam-me! Amanhã é dia de levantar antes das galinhas e preparar as minhas ervas pra benzer as crianças e quebrar os maus olhados, as arcas caídas... E à noite ainda quero pescar umas tainhotas bem gordas, pra comer com "pirão de nalho". Esse "conduto" não vai me dar pesadelo. E, nesse exato instante, a janela do quarto se abriu deixando entrar casa adentro uma ventania com cheiro de maresia misturada com enxofre.
Era o Vento Sul que varria tudo o que via pela frente.
Além do vento algo puxou a barra do pijama de Velho João, que imediatamente, num só pulo, enfiou-se embaixo do colchão. E, lá fora da casa, uma voz dizia alto e em bom tom:
- Velho João, Velho João... Agora ouve tua mãe, aquela te deixou nascer lá no meio do milharal da praia do Ribeirão... Dizi ax fofoquera, que éx fio de bruxa, maix não liga não mô fio, i durma im pax qui eu também ti proteju!!! Purissu tu nunca caisse da vassora quandu avuavax cum ela, ti alembra? I óia qui mi dessi um monti de netu bem bunitu, vissi? Ahahahaha...
E essa risada ficou para sempre na cabeça do Velho João, o filho da bruxa. E sua história ficou na memória de algumas pessoas de sua família, lá do Sertão do Ribeirão da Ilha da Magia de Santa Catarina.
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Autoria de Claudete Terezinha da Mata. Conto que faz parte da sua vivência e elaborado textualmente, em 2007, após ter participado do curso de formação de contador de histórias pelo SESC/Prainha, com Cléo Busatto - história narrada, quase sempre, em todos as suas narrativas, sendo a mais recente em 7 de dezembro de 2014 em Urussanga, com o grupo de escritores da ACPCC, num de seu eventos de lançamento literário. Em 2011 narrei o Velho João na Feira do Livro em Palhoça/SC, num jogo de improviso com a escritora Inês Carmelita Lohn, e em 2012, na abertura da "Oficina Literária Boca de Leão" para mostrar ao público iniciante como um escritor contador de histórias necessita proceder numa narrativa cênica ao fazer uso da literatura oral com o auxílio dos elementos de cena, como: Máscaras, roupas e outros instrumentos, bem como, a utilização de planos físicos, tipo e impostação de voz, expressões corporais, delimitação de pausas numa contação de histórias, cuidados com o vocabulário, controle da respiração e mudança da voz na representação dos personagem. Este conto pode ser encaixado em diversas categorias e gêneros - um deles pode ser contos bruxólicos e contos de assombração. Tenho o hábito de escrever este conto a cada apresentação que faço, assim preservo o que vivi na minha meninice na Ilha onde nasci, fui criada e educada, aprendi a andar, tive meus dois filhos e onde me tornei uma contadora de histórias e escritora da memória. Um dia ainda conseguirei escrevê-lo definitivamente e editá-lo.
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A benzedura feita nesta criação é considerada um "responso" que faz parte das orações populares rezadas aos santos para que nenhum mal nos aconteça e também para que possamos encontrar coisas extraviadas ou perdidas. Mas a que sempre rezo nas contações de histórias é outra porque ainda não consegui memorizar esta. O "brebe" é um saquinho com ervas bentas, feito pelas benzedeiras que colocam no pescoço das pessoas como um amuleto de proteção. O pirão de nalho, de origem indígena e mantido pelos açorianos, é o conhecido pirão feito farinha de mandioca e água fervente para deixá-lo bem escaldado. Os antigos também faziam o pirão de pinto que era feito com a mesma farinha e água fria. Eles também faziam pirão de café fervido para comer com peixe frito e outros condutos (berbigão, peixe, camarão e carne seca, todos ensopados sobre o pirão).
OBSERVAÇÃO DA AUTORA: queridos escritores, estou publicando este conto após ter passado por uma situação embaraçosa, envolvendo a citada escritora que me levou aos meus arquivos antigos e resgatar este conto que faz parte da minha meninice e como procuro manter o texto completo no meu blog "No Caldeirão da Mulher Celta", prefiro escrevê-lo em outros meios do jeito que acabo de escrever. Hoje também publiquei no site Recanto das Letras onde tenho vários contos de minha autoria e alguns adaptados por mim. Ele também se encontra dentro do meu livro "Memórias", ainda em espera para revisão final e publicação.
Ainda estou procurando nos arquivos deste blog do Grupo Boca de Leão, uma publicação que fiz em 2013 quando narrei o Velho João no dia 24 de julho de 2012. Não estou encontrando, por esta razão, solicito a quem encontrar que me avise por e-mail:
claudetedamata@gmail.com - por gentileza!
Eu agradeço a confiança de todos e em breve estarei postando todos os relatórios não registrados, dos eventos da nossa oficina. OBRIGADA A TODOS OS MEUS LEITORES!