Foram duas noites, com início às 18h, dois momentos em que o Grupo Boca de Leão chegou para dar continuidade aos "estudos e análise da narrativa".
Iniciamos esse processo em julho, com os integrantes: Viviane R. da Cunha, Evandro J. Duarte, Dora Duarte (acima, de casaco cinza), o menino Gabriel Mariano (acima, com sua mãe Fátima), Rita Teixeira (ao lado da mãe de Gabriel), Idê Bitencourt (acima, sentada ao meu lado, na ponta do sofá), Saray Martins e Aparecida Facioli (as duas na foto abaixo) - Um momento muito especial na vida da Matilha Boca de Leão, em que todos ficaram atentos ao processo inicial da análise da narrativa com a leitura do texto de Cortázar: "Continuidade dos parques".
Este conto inicia com o narrador começando a leitura de um romance, desses que deixam os leitores intrigados, com vontade, ora de desistir (pelo nível de complexidade da narrativa) e ora de ir até o final, e tão logo, desperta algumas angústias que levam o leitor ao encontro do narrador para sentir com ele toas as suas impressões (seus sentimentos de amor, desafeto, vontade de fazer o jamais feito antes, sentir a mesma ira ou o medo...), impulsionado pela necessidade de retornar e ler outras vezes, até que as ideias contidas nas entrelinha comecem a ficar evidentes. Agora, vamos à leitura do conto abaixo.
"Continuidade dos parques", de Julio Cortázar
(Gênero narrativo)
Começara a
ler o romance dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou à
leitura quando regressava de trem à fazenda; deixava-se interessar
lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Essa tarde, depois
de escrever uma carta a seu procurador e discutir com o capataz uma
questão de parceria, voltou ao livro na tranquilidade do escritório que
dava para o parque de carvalhos. Recostado em sua poltrona favorita, de
costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante
possibilidade de intromissões, deixou que sua mão esquerda acariciasse
de quando em quando o veludo verde e se pôs a ler os últimos capítulos.
Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas;
a fantasia novelesca absorveu-o quase em seguida. Gozava do prazer meio
perverso de se afastar linha a linha daquilo que o rodeava, e sentir ao
mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto
respaldo, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que além dos
janelões dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra por
palavra, absorvido pela trágica desunião dos heróis, deixando-se levar
pelas imagens que se formavam e adquiriam cor e movimento, foi
testemunha do último encontro na cabana do monte. Primeiro entrava a
mulher, receosa; agora chegava o amante, a cara ferida pelo chicotaço de
um galho. Ela estancava admiravelmente o sangue com seus beijos, mas
ele recusava as carícias, não viera para repetir as cerimônias de uma
paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos
furtivos. O punhal ficava morno junto a seu peito, e debaixo batia a
liberdade escondida. Um diálogo envolvente corria pelas páginas como um
riacho de serpentes, e sentia-se que tudo estava decidido desde o
começo. Mesmo essas carícias que envolviam o corpo do amante, como que
desejando retê-lo e dissuadi-lo, desenhavam desagradavelmente a figura
de outro corpo que era necessário destruir. Nada fora esquecido:
impedimentos, azares, possíveis erros. A partir dessa hora, cada
instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O reexame cruel mal
se interrompia para que a mão de um acariciasse a face do outro.
Começava a anoitecer.
Já sem se
olhar, ligados firmemente à tarefa que os aguardava, separaram-se na
porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao Norte. Do
caminho oposto, ele se voltou um instante para vê-la correr com o cabelo
solto. Correu por sua vez, esquivando-se de árvores e cercas, até
distinguir na rósea bruma do crepúsculo a alameda que levaria à casa. Os
cachorros não deviam latir, e não latiram. O capataz não estaria àquela
hora, e não estava. Subiu os três degraus do pórtico e entrou. Pelo
sangue galopando em seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher:
primeiro uma sala azul, depois uma varanda, uma escadaria atapetada. No
alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A
porta do salão, e então o punhal na mão, a luz dos janelões, o alto
respaldo de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona
lendo um romance.
Temos aqui uma narrativa de
ficção que vai se constituindo a partir da presença de alguns elementos indispensáveis à sua estruturação:
narrador, personagens, cenário, tempo e enredo.
TAREFA A SER ENTREGUE PELO GRUPO LITERÁRIO BOCA DE LEÃO, AO FINAL DESTE PROCESSO DE ANÁLISE DA NARRATIVA
1 - Neste processo de análise, podemos perguntar aos leitores:
a) Quem narra a história em “Continuidade dos parques”?
b) Quais
são as personagens mais envolvidas na trama?
c) Como as personagens são caracterizadas?
d) A história
apresenta dois cenários. Você poderia dizer quais são e o que você consegue descobrir sobre o primeiro
cenário, lá no final da história?
e) Qual é o tempo e quais são os seus espaço na trajetória da história?
f) Cite qual acontecimento que desencadeia a ação final da história
2 - Neste
conto, há dois fatos sendo narrados: Um é do leitor e outro é o dos amantes. No decorrer de ambos, um
reflete o outro. Então podemos dizer que temos aqui uma composição inconsciente, em que as duas histórias vão acontecendo, nos oferecendo pistas contidas nas entrelinhas da leitura feita pelo leitor/personagem, quando os fatos terminam por se entrelaçar. Neste caso, como você explicaria o processo de construção de cenário, das personagens e do enredo na
promoção desse efeito - entrelaçamento das duas histórias?
3 - Após a
leitura do conto "Continuidade dos parques", podemos afirmar que a primeira pista que o autor nos fornece
sobre o caráter fantástico de sua narrativa, é o título da história. Por quê?
4 - A
literatura e as demais formas de arte podem levar o ser humano a refletir sobre
as angústias e alegrias da própria existência. A leitura do conto nos ajudaria
a compreender melhor a realidade? Por quê?
Ao finalizar o debate, ora sobre a forma do fazer literário e ora sobre o conto de Cortázar, demos início à leitura do conto de Calvino, de seu livro "Um general na biblioteca". No decorrer desta leitura, o leitor poderá conhecer um pouco sobre as experiências de vida do autor Ítalo Calvino.
Havia um país onde todos eram ladrões.
À noite, cada habitante saía, com a gazua e a lanterna, e ia arrombar
a casa de um vizinho. Voltava de madrugada, carregado e encontrava a
sua casa arrombada.
E assim todos viviam em paz e sem prejuízo, pois um roubava o outro, e
este, um terceiro, e assim por diante, até que se chegava ao último que
roubava o primeiro. O comércio naquele país só era praticado como
trapaça, tanto por quem vendia como por quem comprava. O governo era uma
associação de delinquentes vivendo à custa dos súditos, e os súditos
por sua vez só se preocupavam em fraudar o governo. Assim a vida
prosseguia sem tropeços, e não havia nem ricos nem pobres.
Ora, não se sabe como, ocorre que no país apareceu um homem honesto. À
noite, em vez de sair com o saco e a lanterna, ficava em casa fumando e
lendo romances.
Vinham os ladrões, viam a luz acesa e não subiam.
Essa situação durou algum tempo: depois foi preciso fazê-lo
compreender que, se quisesse viver sem fazer nada, não era essa uma boa
razão para não deixar os outros fazerem. Cada noite que ele passava em
casa era uma família que não comia no dia seguinte.
Diante desses argumentos, o homem honesto não tinha o que objetar.
Também começou a sair de noite para voltar de madrugada, mas não ia
roubar. Era honesto, não havia nada a fazer. Andava até a ponte e ficava
vendo a água passar embaixo. Voltava para casa, e a encontrava roubada.
Em menos de uma semana o homem honesto ficou sem um tostão, sem o que
comer, com a casa vazia. Mas até aí tudo bem, porque era culpa sua; o
problema era que seu comportamento criava uma grande confusão. Ele
deixava que lhe roubassem tudo e, ao mesmo tempo, não roubava ninguém;
assim sempre havia alguém que, voltando para casa de madrugada, achava a
casa intacta: a casa que o homem honesto devia ter roubado. O fato é
que, pouco depois, os que não eram roubados acabaram ficando mais ricos
que os outros e passaram a não querer mais roubar. E, além disso, os que
vinham para roubar a casa do homem honesto sempre a encontravam vazia;
assim iam ficando pobres.
Enquanto isso, os que tinham se tornado ricos pegaram o costume, eles
também, de ir de noite até a ponte, para ver a água que passava
embaixo. Isso aumentou a confusão, pois muitos outros ficaram ricos e
muitos outros ficaram pobres.
Havia ricos tão ricos que não precisavam mais roubar e que mandavam
roubar para continuarem a ser ricos. Mas, se paravam de roubar, ficavam
pobres porque os pobres os roubavam. Então pagaram aos mais pobres dos
pobres para defenderem as suas coisas contra os outros pobres, e assim
instituíram a polícia e constituíram as prisões.
Dessa forma, já poucos anos depois do episódio do homem honesto, não
se falava mais de roubar ou de ser roubado, mas só de ricos ou de
pobres; e no entanto todos continuavam a ser pobres.
Honesto só tinha havido aquele sujeito, e morrera logo, de fome.
SP: Companhia das Letras, 2001, pp 31 e 32 )
Após esta leitura, abriu-se o espaço de análise e debate em grupo, onde cada participante teve sua vez de falar sobre seu ponto de vista e refletir sobre os demais pontos levantados.
Nesse processo de análise, o menino escritor e grande leitor Gabriel Mariano (12 anos), que participa do Grupo Boca de Leão desde 24 de julho de 2012, aos seus 10 anos de idade quando escreveu seu primeiro conto que será lançado em breve, na primeira coletânea de criações literárias do grupo - expressou o que lhe veio à memória, num primeiro momento da leitura:
- Isso aqui tá parecendo com a forma de enriquecer do Brasil, bem no começo da roubalheira, porque hoje só os honestos morrem de fome. Pra não morrer, tem que ter muita coragem de vencer sem virar ladrão.
O nosso Gabriel é um menino fantástico nas suas colocações. Sempre paramos para ouvi-lo e depois ele nos desperta com o seu prodigioso saber. Ele, de imediato, viu que o
texto, numa análise alegórica,apresenta uma mera semelhança com a arte
de enriquecer no Brasil, porém, sem saber que o texto foi escrito por um jovem durante a
década de 40, quando Ítalo estava preso pelo regime fascista italiano. Além de Gabriel, temos a nossa idosa chiquérrima Aparecida Facioli - Cida (de chapéu), que chegou de mansinho no grupo, sempre às escutas, muito atenta a tudo, com muita sede aprender.
Ela anota tudo o que ouve, na medida que consegue, porque, entre uma pausa e outra, ela apresenta as suas ideias sempre a complementar a fala de um colega. Depois ela me entrega toas as suas anotações. Ao final solicitou um histórico da vida de Calvino.
Saray Martins, ao lado da Cida, também oferece ótimas contribuições aos debates. Ela é maravilhosa na forma de fazer análise, sempre a fazer uma ponte com as suas experiências de vida e como tudo tem contribuído com o seu aprendizado. Sem a sua presença, o grupo sente falta das suas falas, seus olhares, sua forma de ver e interpretar as narrativas e contextualizar os narradores, em especial os seus autores. então ela dá aquela injeção de vontade, de choque, de muitos elementos que todo grupo precisa para ser sacudido a todo instante.
Após esses dois debates, que mostraram aos participantes, as suas necessidades implícitas e inerentes ao processo da escrita consciente com criatividade, ficou evidente na narrativa a analogia feita por Gabriel Mariano que expressou o seu gosto pela leitura em geral e, em especial ao texto de Calvino, expressou suas ideias sobre a forma de enriquecer dos políticos no Brasil, identificada por ele no
texto "A Ovelha Negra", que apresenta uma abordagem onde tudo pode acontecer porque nenhum morador da cidade da Ovelha Negra vive por conta de um costume que aos poucos vai se modificando, enquanto isso uma
pessoa honesta, que prefere manter a sua ética, renuncia à fartura e aos regalos da vida vistos por pessoas que lutam todas as noites pelo seu bem comum àqueles que comungam o mesmo costume, como um meio de subsistência único. Por não comungar do mesmo hábito, um homem encontra uma saída nada agradável à maioria, então ele prefere contemplar o rio embaixo da ponte a que fechar os olhos e colocar em terra o seu maior patrimônio - aquele que lhe aponta o seu modo de pensar o
mundo e jamais deixar de ser ético.
Então o homem honesto, de
Calvino, abraça as suas convicções não reveladas pelo narrador, apenas sentida pelo leitor, e morre de fome a que aliar-se à classe dominante. Este é um homem forte - aquele que vence a fome do poder antiético e mostra sua grande fortaleza ao morrer com sua alma livre das velhas ideias que escravizam a mente daqueles que só sabem alimentar o corpo.
O texto de gênero narrativo, tendo como artigo dominante, o artigo indefinido: Um e uma sucessão de pronomes indefinidos, numeral cardinal. O narrador relata o fato de que um homem honesto que, de repente aparece e se instala na cidade e no início, à noite, ele não saía de
sua casa para roubar, preferindo ficar fazendo alguma coisa para ocupar o tempo enquanto os vizinhos saiam para roubar. com a luz acesa, ninguém roubava a sua casa. Porém, alguém ficava sem roubar.
O texto relata uma situação fictícia, onde os personagens envolvidos na
trama não são identificados pelo autor, um fato que leva o leitor à
oportunidade de fazer uma analogia de acordo com o conhecimento da
realidade que o cerca.
Era um lugar onde todos "[...] viviam em paz e sem prejuízo,..." Tudo nessa cidade não ia ao encontro de uma pessoa que, sem esforços para adequar-se às regras desse sociedade, não reage, não luta contra, mas que prefere viver ao seu próprio modo de ser e acaba por provocar algo inusitado na cidade - a quebra de valores onde a coerência começa a entrar na cidade. Porém, todos continuavam pobres de virtudes pelo fato de prenderem-se aos bens que as traças ainda conseguem roer. Pior ainda, pelos meios ilícitos de aquisição desses bens. Neste processo de análise, todas as respostas são de cunho pessoal. Cada cabeça, uma sentença!
Após conhecer este texto, iniciei uma pesquisa na internet em busca de outras leituras e análises sobre o mesmo e vejam o que encontrei:
SER OU NÃO SER HONESTO:
EIS A QUESTÃO...
Em "Um general na biblioteca", nos lega raccontini curiosíssimos, a exemplo de A Ovelha negra, continho escrito em 1944, quando o autor, devido a sua militância política, filiado que era ao Partido Comunista Italiano, com o qual, inclusive, rompeu em 1956, estava preso pelo regime fascista na Itália... Daí ser o conto um gênero literário das sociedades caóticas, como já afirmou o escritor brasileiro Moacyr Scliar? Para a escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, sim, “porque ele é rápido, de curta duração”. Afinal, ela questiona: “O que existe no caos? Justamente a falta de tempo, de perceber o outro”. Para ela, o romance, por sua vez, é para um tempo de paz e de tranquilidade.
Enfim! Os raccontini de Um general na biblioteca,
como eu já mencionei nos dois posts anteriores, foram selecionados e
organizados postumamente pela tradutora argentina Esther Calvino, viúva
do jornalista, contista, romancista e ensaísta italiano. Já a tradução
desta edição para o português é assinada pela brasileira Rosa Freire
d’Aguiar, sendo publicada pela editora Companhia de Bolso em 2010, cuja
venda, aliás – continuo insistindo que, cada vez mais, não entendo o
motivo – é proibida em Portugal... Mas, e A Ovelha negra? Com
conotações diversas, a expressão, no caso do continho em questão, se
refere, ironicamente, a um dito cidadão que, por prezar por sua
honestidade, é a única exceção em um país onde todos são ladrões e no
qual todos se locupletam à custa de outrem – qualquer semelhança com a
realidade brasileira é, apenas, mera coincidência...
Calvino,
que, certa vez, disse: “Entre os meus familiares somente os estudos
científicos eram honrados: um tio materno meu era químico, professor
universitário, casado com uma química; tive dois tios químicos casados
com tias químicas. (...) Eu sou a ovelha negra, o único literato da
família”. Isso sem falar que o seu pai era agrônomo e a sua mãe
botânica... De qualquer modo, feliz do leitor, que, por Calvino ser um
escritor, pode desfrutar dos seus textos sempre tão sagazes,
perspicazes, irônicos e repletos de bom humor, em um estilo ágil, cuja
estrutura narrativa está isenta de elementos de peso. Muitos dos seus
textos, inclusive, são, ainda, parábolas por ele inventadas; outros
inspirados em fábulas lidas ou contadas. Eis, portanto, o irônico divertido, como Calvino, que acreditava que o horizonte é a única reta contínua, ficou conhecido em Paris!
Do Blog: http://abagagemdonavegante.blogspot.com.br/2010/09/ser-ou-nao-ser-honesto-eis-questao.html
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Rastros de Calvino
Como num jogo involuntário, textos irregulares de Um General na Biblioteca mostram a multiplicidade da obra do italiano
Um autor sempre paga um
preço quando seus manuscritos de juventude, ou os guardados na gaveta,
ou os apenas confinados a periódicos, são escavados e publicados
postumamente em forma de livro, incorporando-se simbolicamente a sua
obra. É verdade também que esses escritos, por terem ficado ocultos,
ajudam a explicar os que vieram à luz por opção do autor. Essa conta que
se faz não é diferente com Ítalo Calvino, um escritor que soube
combinar como poucos o realismo da literatura italiana do pós-guerra com
os movimentos de vanguarda posteriores. Publicado agora no Brasil, Um General na Biblioteca
reúne apólogos, contos, diálogos e esboços de romances escritos entre
1943 e 1984, cujas qualidades literárias, analisadas friamente, são
francamente irregulares. Entretanto, se esse custo é inevitável, ele não
é o mesmo para todos os autores e, no caso específico, as
particularidades são tantas e tão notáveis que, na ponta do lápis,
acabam por justificar a publicação.
Porque há mais que isso no caso de Calvino: mais que um estudo a posteriori, Um General na Biblioteca
permite, em grau superior, uma nova leitura, quase como se o livro
tivesse sido o resultado de um experimento involuntário do escritor que,
por felicidade (não há outra palavra), funciona como narrativa. Nos
textos, editados segundo uma ordem cronológica, vão-se encontrando,
embaralhadas, pistas dos temas, das técnicas e da postura do autor
diante da vida e de seu ofício. Nada mais adequado para uma obra que
frequentemente é identificada com o universo dos jogos de Borges e que,
deliberadamente, nasceu em grande parte da intenção de fazer do ato de
escrever um exercício – da metalinguagem de Se um Viajante numa Noite de Inverno ao desafio de interpretar signos em O Castelo dos Destinos Cruzados.
O resultado é que em Um General na Biblioteca, nas suas deficiências e boas surpresas, surge um novo, mas perfeitamente reconhecível, Italo Calvino. No conto O Incêndio da Casa Abominável (publicado em 1973 na Playboy italiana), por exemplo, reconhecemos o exercício daquilo que Umberto Eco chamou de as combinatória
na investigação feita por um programador de computador, que permuta
possibilidades de acontecimentos com base em uma lista de 12 crimes e
quatro personagens mortos em uma casa queimada. Não por acaso, o conto
nasceu de um desafio que a IBM lhe fez, o de escrever uma história em
uma de suas máquinas, numa época em que não havia processadores de texto
da Microsoft e congêneres a auxiliar os leigos em linguagem binária. O
tema implícito de decifrar um labirinto de informações, aliás, aparece
também em A Memória do Mundo, que reitera a marca enciclopédica e “catalogadora” de uma obra que se debruçou sobre As Cidades Invisíveis de Marco Polo até, de forma mais direta, à obra de não - ficção Por Que Ler os Clássicos.
E é assim que um pouco de tudo de Calvino vai se revelando. Em O Regimento Desaparecido está a marca da trilogia Os Nossos Antepassados, que reúne os romances O Visconde Partido ao Meio, O Cavaleiro Inexistente e O Barão nas Árvores; no bom Amor longe de Casa, os símbolos e a dificuldade de comunicação dos contos de Os Amores Difíceis e do próprio O Castelo dos Destinos Cruzados; em O Chamado da Água, a descrição minuciosa e precisa encontrada em Palomar; nas noções geológicas de A Bomba de Gasolina, a pesquisa para As Cosmicômicas; na casa entre o mar e a colina, o cenário das memórias de infância de O Caminho de San Giovanni
(este também publicado postumamente). E, em quase tudo, menos ou mais
visível, um pouco da narrativa fabulatória que levou a Giulio Einaudi
Editore a encomendar a Calvino a compilação de Fábulas Italianas, em 1954.
Nesse tipo de ficção, não é
só o tom moral que conta, mas sobretudo a forma, que às vezes nos
desconcerta em sua objetividade, ou “rapidez”, como preferia o autor:
“Havia um país em que tudo era proibido” é o primeiro parágrafo de Quem se Contenta; em A Ovelha Negra,
a fórmula se repete: “Havia um país em que todos eram ladrões”. As duas
histórias são apólogos de sua primeira fase, ainda na juventude, quando
o autor considerava o gênero um modo de narrativa menor, típico de um
período de crise e opressão que ele associava ao fascismo italiano. Não
deixa de ser notável, contudo, que a narrativa em forma de fábula possa
ser encontrada em outros autores italianos de épocas distintas – de Dino
Buzzati ao já mencionado Umberto Eco – e tenha mesmo reaparecido em
formas mais sofisticadas nos escritos posteriores de Calvino, sendo
“reabilitada” por ele como valor narrativo em suas Seis Propostas para o Próximo Milênio, na conferência Rapidez.
A irregularidade que se vê em Um General na Biblioteca
não advém, portanto, dessa formulação singela, típica dos apólogos,
como se poderia imaginar de início. Ao contrário, algum constrangimento
acontece em narrativas de maior fôlego, quando o jovem Calvino ainda
mostrava uma técnica deficiente no esforço descritivo e/ou de narração
subjetiva, como é visível nos contos – esses mais longos – O Rio Seco e Imprestável.
Este último, a história boba de um homem que não sabia amarrar os
cadarços do sapato, pensada originalmente como romance, que seria
chamado de Como Eu não Fui Noé (!). Aqui,
compreendemos bem as razões que levaram o autor a abortar o projeto,
como muitos outros exemplos que se seguem no livro – narrativas
bruscamente interrompidas (O Colar da Rainha), fragmentadas (A Decapitação dos Chefes) ou simplesmente não levadas por algum motivo a público (Henry Ford).
Em compensação, há boas ideias, caso de Como um Voo de Patos e Um Belo Dia de Março,
e momentos de pura síntese, ou “rapidez”: “Nessas horas, não consigo
ficar em casa. Moro num quarto alugado num quinto andar; debaixo de
minha janela dia e noite os bondes balançam na rua estreita, como que
passando descarrilados pelo quarto; à noite, lá longe os bondes dão
gritos como corujas. A filha do senhorio é uma empregada gorda e
histérica: um dia quebrou um prato de ervilhas no corredor e se fechou
no quarto gritando”.
Ainda entre o
constrangimento e as boas surpresas, há passagens em que se reconhecem
mais nitidamente os traços de Calvino como pessoa pública, imagem
historicamente associada ao antifascismo e à militância no Partido
Comunista Italiano. Em alguns contos, por serem mais esboços de obras,
há um tom discursivo maior, elaborado. É o que permite, por exemplo, o
autor misturar literatura com o ensaio teórico e engajado (Olhos Inimigos ou o diálogo Montezuma) e até explicar em notas as alegorias políticas, como se vê em A Grande Bonança das Antilhas.
Ao lado disso, a mesma literalidade revela também a postura de um
intelectual que, no pós-guerra, vai acompanhando as mudanças no mundo ao
seu redor: além de computadores, surgem mísseis nucleares, tevê, um
personagem hippie.
Como foi dito, parte disso é
apresentada de forma um pouco tosca e caricata. Mas essa soma de
informações em várias técnicas de escrita não é nada má para quem, já no
fim da vida, disse na última conferência de Seis Propostas..., intitulada Multiplicidade:
“(...) Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de
experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é
uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma
amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e
reordenado de todas as maneiras possíveis”. É por isso que vale a pena,
em Um General na Biblioteca, decepcionar-se um pouco com Calvino. Agosto de 2001 © Almir de Freitas)
APÓS PESQUISA, LEITURA E ANÁLISE DA NARRATIVA EM GRUPO
SURGE A TAREFA DO GRUPO BOCA DE LEÃO
Levando em conta todos os tipos textuais identificados, tanto em Cortázar quanto em Calvino e outros autores, podemos encontrar uma gama de textos, que podem ser narrativos, descritivos,
argumentativos, explicativos, informativos,especulativos, etc., cada qual com as suas nuances muito bem escritas nas entrelinhas. Os dois textos acima são ricos pela complexidade estrutural, tendo em jogo dois escritores com experiências diferenciadas. Cada qual no seu tempo e no seu momento.
Tanto em Cortázar quanto em Calvino, encontramos uma sequência de ações que se estruturam em torno de uma
fato, ou mais, responsável pela mudança do fato. Então:
Após uma segunda leitura do conto "A Ovelha Negra", feita para o aprendizado do processo de estudo da narrativa, com o apoio do Livro de Cândida Vilares Gancho: "Como analisar narrativas", neste dia 5 de setembro, o grupo levou como tarefa para o próximo encontro.
1 - Sabendo que os dois contos se diferem pela maneira peculiar de cada autor, como você classificaria os dois
textos acima? Não esqueça de recorrer ao livro de apoio!
Agora, repita a leitura de Calvino, quantas vezes for preciso, até que tudo fique claro à luz de suas ideias. Depois, sente-se e brinque com as ideias colocando-as no papel para mostrá-las ao grupo no encontro de 18 de setembro.
2 - No conto de Calvino "A Ovelha Negra" o fato narrado, aquele
responsável pela mudança da situação, surge essencialmente para o desenrolar das
ações, onde a palavra UM nas linhas abaixo, na sua interpretação textual, expressam o quê:
b) “… pois UM roubava o outro…” _________________________________
c) “… no país apareceu UM homem honesto.”________________________
d) " Honesto só tinha havido aquele sujeito, .." _______________________
2 - Neste
texto, acontece uma vasta ocorrência de pronomes indefinidos, como:
algum,
nada, tudo alguém, ninguém, pouco, todos, um. Procure, do seu jeito, o
por que da existência desses pronomes no contexto da narrativa.
3 - Podemos dar o nome de círculo vicioso a uma sucessão de ideias ou fatos
contidos no texto, que retornam sempre à ideia ou fato inicial. Procure no texto de Calvino, uma passagem em que a sucessão dos fatos forma um círculo vicioso conduzidos por artigos indefinidos. Fale um pouco sobre este contexto!
4 - A quem Calvino se refere, do início ao final do texto?
5 - Na sua opinião, qual a maior pobreza e as suas consequências, dessa sociedade narrada por Calvino?
5 - Sua leitura gira em torno de uma variedade de fatos que permeiam a vida do autor, de seu narrador, seus personagens e da nossa própria vida. Você concorda? por quê?
6 - Agora conclua a sua análise falando um pouco sobre o que você sentiu de Calvino e de Cortázar.
Estar com a nossa "matilha de leões", sempre é um reencontro especial. Posso dizer: Um momento de troca de energias quentinhas de um amor que está sendo inovado a cada encontro. Quem não consegue estar nessa troca energética à Luz das Palavras e seus Sentimentos, participa uma única vez; quem não consegue estar sempre presente, ou aconteceu algo que o impediu de alimentar sua aura e seu coração com esta energia, ou então estava com aquela preguiça passageira - aquela que só não consegue prender em casa, numa noite de vento sul, chuva e um surpreendente resfriado: Eu!
MATILHA DO MEU CORAÇÃO, VAMOS CONTINUAR CAPRICHANDO!
Claudete T. da Mata, Florianópolis, SC, 2014.
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